terça-feira, 16 de setembro de 2008

Cartas de um diabo a seu aprendiz

Já foi dito que a artimanha mais comum do diabo em nosso tempo é fingir que não existe. Eu próprio já caí nessa. Certa vez um padre de tendências TL me levou a acreditar que não há diabo, nem inferno, que o mal está em nós mesmos. Levei muito tempo para me livrar desse pensamento que, no fim das contas, tem como efeito nos acreditar que no fim das contas não é só o diabo que não existe, mas o próprio mal e que, enfim, tudo é permitido.

Graças a Deus eu me afastei disso.

Pois bem, o diabo existe e, para melhor nos tentar, ele se faz de mito. Deixou que os artistas o ridicularizassem, para que parecesse apenas um palhaço, ou dele fizessem um "rei dos prazeres". Quantas vezes já não se viu por aí representações de um céu tedioso com anjinhos de branco tocando harpa, em contraste com um inferno superdivertido, cheio de mulheres fogosas? Pois é...

Escrevo isso para falar de um livro absolutamente marcante: Cartas de um Diabo a seu Aprendiz, do genial C. S. Lewis. O livro, obviamente uma ficção, é composto por um conjunto de cartas que o diabo sênior Fitafuso teria mandado a seu sobrinho, o iniciante na carreira demoníaca Vermebile. Nessas cartas, Fitafuso dá dicas ao aprendiz sobre como melhor tentar a alma de um rapaz para que ela seja conquistada pelo inferno. Há um certo clima de humor negro, mas isso é apenas superficial. O livro é, enfim, um belo tratado sobre a alma humana.

Nas cartas, Fitafuso chama a Deus de "Inimigo". E diz várias vezes que não pode compreender o amor dEle para com os humanos. Aliás, ele não pode compreender o conceito de amor. Ele também reclama da grande misericórdia divina, que constantemente sabota os planos diabólicos. Mas dá muitas dicas a Vermebile, abordando inúmeras aspectos comuns do cotidiano e ensinando como usá-los para levar a alma à perdição. E ele insiste sempre: para se perder, uma alma não precisa cometer grandes atos de crueldade. Pequenos pecados podem ser muito mais eficientes para que isso ocorra.

Nisso, o livro é assustador. O autor descreve às vezes situações muito comuns: uma mulher que come pouco, mas reclama sempre do que come; um homem que, numa celebração, fica lembrando das fofocas que ouviu sobre as outras pessoas; um pacifista que condena veementemente a violência e que, por isso, não se envolve na guerra deixando que se cometam as maiores atrocidades. Ele fala também dos impulsos da juventude, da verdadeira alegria e do mero espírito irreverente, fala das más amizades, da castidade, do orgulho, dos momentos de aridez do espírito, fala da racionalidade e do racionalismo, fala da coragem e do ímpeto da juventude e de muitos outros assuntos. Evidentemente, é preciso estar atento para as constantes ironias do texto, já que todo o discurso está na boca de um demônio e, por isso mesmo, muitas vezes, invertido.

Mas é fascinante acompanhar a seqüência das cartas, percebendo, por meio delas, as quedas e as vitórias da alma do pobre rapaz que tem como tentador "oficial" o iniciante Vermebile e que, talvez sem perceber, trava uma luta fabulosa.

Há que se reconhecer: o texto soberbo de Lewis é um deleite à parte. Mas não custa lembrar: C. S. Lewis não era católico. Norte-irlandês de nascimento, amigo de J. R. R. Tolkien, morou na Ingaterra e passou parte da vida na condição de agnóstico. O seu processo de conversão é uma história muito interessante em por si só. Mas sua conversão se deuao anglicanismo. Mas já o chamaram de "o mais católico dos protestantes" em função de sua abertura para a doutrina e para os ritos católicos. Ler suas inúmeras obras é certamente um enriquecimento para o espírito.

Veja abaixo alguns trechos:

No Prólogo:

"Há dois erros semelhantes mas opostos que os seres humanos podem cometer quanto aos demônios. Um é não acreditar em sua existência. O outro é acreditar que eles existem e sentir um interesse excessivo e pouco saudável por eles. Os próprios demônios ficam igualmente satisfeitos com ambos os erros, e saúdam o materialista e o mago com a mesma alegria."

De Fitafuso para Vermebile:

"Espanta-me que você ainda me pergunte se é mesmo essencial manter o paciente na ignorância quanto à nossa existência. (...) Nossa política, no momento atual, é de nos mantermos ocultos. (...) Tenho grande esperança de que, no devido tempo, aprenderemos como tornar a ciência dos homens emocional e mítica a ponto de passarem a desconfiar daquilo que na verdade é a crença em nossa existência (embora não sob esse nome) ao mesmo tempo em que suas mentes semantêm fechadas para o Inimigo. A "Força da Vida", a veneração do sexo e outros aspectos da Psicanálise podem ser bastante úteis nesse sentido. Se pudermos produzir nossaobra perfeita - o Mago Materialista, o homem que não apenas utiliza, mas que na verdade venera aquilo a que dá o nome de "Forças" ao mesmo tempo em que nega a existência de "espíritos" - . então saberemos que a batalha chegará ao fim."

De Fitafuso para Vermebile:

"Parece que você vê a argumentação como melhor método para mantê-lo afastado das garras do Inimigo. Talvez fosse esse o caso se ele tivesse vivido alguns séculos atrás. Naquela época, os humanos sabiam muito bem quando algo era provado ou logicamente ou não; em caso afirmativo, simplesmente acreditavam. Ainda não dissociavam o pensamento de suas ações. Estavam dispostos a mudar o modo como viviam a partir das conclusões tiradas de uma certa cadeia de raciocínio. Mas, com a imprensa semanal e outras armas semelhantes, conseguimos alterar tudo isso. O seu paciente foi acostumado, desde criança, a ter uma série de filosofias incompatíveis dentro da cabeça. Ele não classifica doutrinas basicamente como "verdadeiras" ou "falsas", e sim como "acadêmicas" ou "práticas", "antiquadas" ou "contemporâneas", "convencionais" ou "cruéis". (...) Não desperdice seu tempo tentando fazê-lo pensar que o materialismo é algo verdadeiro. Faça-o pensar que é algo sólido, ou óbvio, ou audaz - enfim, que é a filosofia do futuro. É com esse tipo de coisa que ele se importa."

De Fitafuso para Vermebile ("Nosso Pai", em suas palavras, é, claro, Satanás) :

"Nunca se esqueça de que, quando lidamos com qualquer prazer, na sua forma normal e gratificante, estamos, de certo modo, no campo do Inimigo. Eu sei que já ganhamos várias almas através do prazer. Ainda assim, o prazer é invenção d'Ele, não nossa. Ele concebeu os prazeres . Nossa pesquisa, até o momento, não permitiu que produzíssemos sequer um deles. Tudo o que podemos fazer é encorajar os humanos a abordar os prazeres que o nosso Inimigo criou e usá-los de certas formas, ou em certos mumentos, ou em certo grau que Ele tenha proibido. Sempre tentamos, portanto, trabalhar longe das condições naturais de qualquer prazer, e sim naquelas em que ele é menos natural, em que menos sugira seu Criador, e seja menos gratificante. A fórmula, portanto, resume-se a uma ânsia cada vez maior por um prazer cada vez menor. É mais seguro e mais elegante. Possuir a alma de um homem e não lhe dar nada em troca - é isso que realmente alegra o coração do Nosso Pai."

De Fitafuso para Vermebile:

"Obviamente, eu sei que o Inimigo quer que os homens se afastem de si mesmos, mas de modo diferente. Lembre-se sempre de que Ele realmente gosta desses vermezinhos, e que dá um valor absurdo para a individualidade de cada um deles. Quando ele fala sobre o fato de eles se perderem a si mesmos, Ele apenas se refere ao abandono da vontade própria: uma vez alcançado esse abandono, Ele lhes devolve toda a sua personalidade e gaba-se (desconfio que o faça sinceramente) do fato de que, quando eles pertencerem totalmente a Ele, serão mais eles mesmos do que nunca. POrtanto, ao mesmo tempo que se compraz em vê-los sacrificando suas menores vontades à d'Ele, Ele odeia ver que eles estão se afastando de sua própria natureza por outros motivos".


De Fitafuso para Vermebile:

"Os Cristãos descrevem o Inimigo como alguém "sem o qual Nada é forte". E o Nada é bem forte: forte o suficiente para roubar os melhores anos da vida de um homem, não através de doces pecados, e sim da terrível oscilação de seus pensamentos sobre sabe-se lá o quê, e sabe-se lá por que razão, na satisfação de curiosidades tolas das quais ele pouco tem consciência, no tamborilar dos dedos e nos breves momentos de euforia, no assobiar de canções de que ele não gosta ou no extenso e mal-iluminado labirinto de devaneios que sequer possuem o sabor da luxúria ou da ambição, mas que, uma vez que o acaso lhes der o impulso inicial, a criatura estará muito fraca ou confusa para evitar.

Você dirá que esses são pecados bem pequenos e, sem dúvida, como todos os tentadores jovens, você está ansioso para relatar impressionanetes atos de crueldade. Mas lembre-se de que a única coisa que importa é o quanto você afasta o homem do Inimigo. O tamanho dos pecados não importa, desde que seu efeito cumulativo seja o de afastar o homem da Luz e levá-lo para o Nada. O assassinato não é mais eficaz que o jogo de cartas se o jogo de cartas já for suficiente. De fato, o caminho mais rápido para o Inferno é aquele que é gradual - um leve declive, um caminho suave, sem curvas abruptas, sem marcações e sem placas."

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"O que pode temer o filho nos braços do Pai?"

São Pio de Pietrelcina